Por Luiz Recena Grassi*
A paz no conflito Rússia-Ucrânia pode ser uma miragem do deserto sempre que muitos líderes europeus marcam reuniões ampliadas. Depois do grotesco teatro do Salão Oval da Casa Branca, o líder ucraniano Volodymyr Zelensky voltou para casa com o rabo entre as pernas. Era o que esperavam líderes da Europa, notadamente Inglaterra e França, que acolheram a “vítima” de olho nas novas oportunidades no mercado de armas e de uma suposta liderança da região, com o anúncio de que os Estados Unidos fecharam a torneira do apoio à Ucrânia. E cortaram a cessão de informes de inteligência e defesa. Primeiro Londres, com direito a beijar o anel do rei; depois Bruxelas, em reunião dos 27 da União Europeia. Ali ficou claro que a defesa do grupo é uma coisa, e é bem outra a iniciativa de suprir com armas as deficiências de Kiev.
Zelensky sorriu amarelo, mas assumiu o novo papel que lhe dão. Em rápida metamorfose já admite seguir no palco sob a liderança de Donald Trump. E que o acordo para exploração das terras minerais está pronto, pode ser assinado a qualquer momento. Assim, a reunião do Conselho Europeu de Defesa aprovou plano urgente para armar os países membros. Algo em torno dos 800 bilhões de euros e sem prazo marcado. O dinheiro é muito e ainda não existe todo. Por enquanto, é uma linha de crédito de 160 bilhões de euros, financiada pelo Banco Central Europeu. A juros baixos, mas quem tomar terá nova dívida a pagar. Fontes para o restante ainda estão a ser prospectadas.
Existe quem queira mandar nas verbas. Primeiro foram os ingleses, a vender cinco mil mísseis para a Ucrânia. Depois os franceses, que querem modernizar sua obsoleta indústria. A Alemanha está a cuidar só dela e aumentou o orçamento com verba própria. Há quem diga que os franceses têm pesadelos e suores frios só de pensar em tropas alemãs desfilando em seus bulevares e nos Champs Eliseè. Na sequência estariam Itália, Holanda e países pequenos com produção periférica. Igual ao conto de fadas clássico dos ratos, ninguém assumiu a tarefa de colocar o guizo no pescoço de Donald Trump nem de definir a parte que cabe à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), condenada ao desaparecimento, mas ainda em operação. A rápida unanimidade interrompeu seu curso na hora de votar a proteção aos ucranianos.
A Hungria falou grosso, disse que financiar a guerra seria a ruína da Europa. E saiu. Outros foram para cima do muro. Na hora da decisão de mandar tropas de paz, só Inglaterra e França admitiram a ideia. Alemanha, Itália, Holanda, Eslováquia, Polônia e outros disseram que é cedo. Pediram mais tempo. Zelensky vaga pela Europa com um plano de cessar fogo por ar e mar. “Desonesto”, diz um observador europeu independente, lembrando que são espaços em que Kiev tem poucas armas. Não falou em terra porque é onde ainda tem algum recurso. São gestos de entretenimento político. No Kremlin, Vladimir Putin acha que tem jogo com Trump e ficou irritado com declarações de Macron sobre o uso de armas nucleares para dissuadir a Rússia. Para Putin, os franceses insistem em não aprender com os erros de Napoleão, que 200 anos atrás deu com as baguetes n’água ao tentar conquistar a Rússia. Saiu correndo e quase morreu na fuga. A paz pode ser miragem, mas está longe de Bruxelas. Está mais próxima de Moscou e Washington, com algum auxílio dos sauditas.
O CORREIO SABE PORQUE VIU.
Estava lá. Foi no ano de 988 que o príncipe Wladimir I uniu em Kiev as igrejas ortodoxas da Rússia e da Ucrânia. De lá para cá houve mais tempo de paz e harmonia do que o contrário. O conflito atual pode ser um ponto fora da curva e os analistas pósteros cuidarão disso. Na memória do correspondente o ritual da igreja ortodoxa russa é mais sombria que o católico romano. Mas no caminho central, perto do Conservatório Tchaikovsky, há uma pequena e muito velha igreja que entre outros santos é dedicada também a São Nikita, nome de batismo do filho de um querido colega e amigo. Foi um refúgio em momentos de tensão, nostalgia ou tristeza pela distância. Sem grandes orações, pois não havia mais espaço para isso numa cabeça ideológica e bem definida. Só força do espaço, solenidade do ambiente. E a imagem de São Nikita por ali, a acalmar saudades. A volta à luz do dia e suas rotinas eram sempre mais tranquilas. Sem rezas ou promessas. Apenas a calma que emana de lugares assim.
*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou