No primeiro dia de sua segunda edição, o Interfashion Brasília recebeu um dos nomes mais importantes da moda nacional para compor a programação de palestras no Parque das Estações: Jum Nakao. Em um painel ao lado de Lino Villaventura e Fernando Demarchi, o estilista trouxe reflexões relevantes sobre o papel da moda hoje e a definiu como além do vestuário, uma forma de expressão, arte e identidade, opinião que há anos defende.
Logo no início da palestra, Nakao contou que o início de sua trajetória no setor se deu por acaso. O interesse nasceu, na verdade, da vontade de conectar as pessoas. “Nos anos 1980, ainda não tínhamos internet ou celular, e a informação não transitava com a rapidez atual. Eu queria conectar o mundo, ser o criador do Facebook, para que tivéssemos acesso ao que estava acontecendo em outros epicentros”, lembrou, no palco. A escolha mais lógica, então, parecia a engenharia eletrônica, mas o curso não supriu suas expectativas. Foi quando encontrou outro jeito de desempenhar sua vocação. “A forma com que cada um se veste identifica sua tribo. E quando descobri isso, pensei: posso unir as pessoas por meio da moda”, refletiu o estilista, que é um dos designers brasileiros mais conhecidos no mundo.
Foi esse desejo de conexão que o levou a construir uma carreira marcada por narrativas críticas e trabalhos de forte impacto estético. Ao longo dos anos, Nakao se destacou por unir moda, arte e filosofia em criações que extrapolam a passarela e se transformam em manifestações culturais. Um emblemático exemplo é o desfile A Costura do Invisível, apresentado em 2004 no São Paulo Fashion Week.
Para criá-lo, o estilista utilizou uma tonelada de papel de diferentes gramaturas e mobilizou cerca de 200 profissionais para confeccionar peças em mais de 700 horas de trabalho. O resultado foi uma coleção de vestidos delicados e volumosos, que ao final foram rasgados pelas próprias modelos em cena. O gesto simbolizava o fim de uma era para a moda brasileira, marcada por prestígio internacional e representada por grandes designers como Alexandre Herchcovitch, Ronaldo Fraga e Gloria Coelho, mas massacrada e pressionada pela ascensão do fast-fashion e pela lógica do consumo acelerado. O impacto da performance foi imediato: grande parte do público não conteve as lágrimas. Pouco depois, o trabalho foi eleito um dos maiores desfiles do século pelo Musée Galliera, em Paris, e é estudado em livros de ensino fundamental como exemplo de arte contemporânea.
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Durante o talk show no Interfashion Brasília 2025, o designer ainda revelou um detalhe nunca divulgado anteriormente sobre o projeto que considera seu hit. “Inicialmente, o título do desfile era Desejos”, confessou Jum. Um momento especial após a apresentação, porém, fez com que o nome da obra mudasse. “Quando estávamos indo embora do pavilhão do Ibirapuera, uma senhora da faxina veio correndo na minha direção e me abraçou. Disse que havia conseguido assistir o desfile pelos telões e se comoveu. Até pegou um pedacinho de papel para mostrar à família. Perguntei o que ela tinha entendido com a apresentação e ela falou ‘eu acho que você disse para as pessoas que não importa o que elas têm por fora. O que importa é o que está dentro… o invisível’”, contou Nakao, com lágrimas nos olhos. “Aquilo ficou marcado para mim, porque quem faz moda estava esquecendo do invisível. E aquela moça percebeu que a moda não é sobre roupas, é sobre pessoas. Então eu não tive dúvidas e troquei na hora o título do projeto”, finalizou, emocionado.

No Interfashion, duas décadas depois do desfile, Jum Nakao mostrou que suas inquietações na época continuam vivas e ainda mais urgentes. Para ele, a moda não deve se reduzir a vitrines e cabides. “A moda é uma possibilidade de reencontro das pessoas com elas mesmas. Ela perde a função quando não vivifica aquilo que as pessoas têm por dentro”, afirmou em entrevista exclusiva ao Plissê. Para ele, a roupa pode ser avatar, escudo e amplificador, mas jamais calar quem a veste.
O designer também refletiu sobre as rápidas mudanças, a efemeridade das tendências e o desafio de não se deixar levar. Em sua concepção, as trends são ondas inevitáveis, mas que exigem filtro e consciência. “É interessante compreender os fluxos, mas é preciso ser luz, e não apenas alguém levado pela maré”, explicou. Nakao acredita que cada indivíduo precisa encontrar, mesmo que em sintonia com o zeitgeist, uma linguagem própria, afinada pelo autoconhecimento e pela experimentação, para expressar o seu invisível.

Diante deste cenário, Jum compreende que o lúdico é o caminho para resgatar a individualidade, fugir do risco da uniformização de personalidades e devolver a humanidade para a moda. Em suas criações, a imaginação, o criativo e o uso do universo lírico não são uma fuga, mas uma estratégia para despertar a criança que ainda existe em cada um. “É assim que espero fazer com que as pessoas voltem a sonhar, rompendo a armadura e a dureza que quase toma conta de nós, e resgatando aquela parcela que ainda está viva na gente”, admitiu.
Esse mesmo raciocínio se estende às discussões sobre a substituição dos humanos pela tecnologia. Nem a mais avançada inteligência artificial, com todos os cálculos que a sustentam, conseguiria reproduzir esse gesto humano de criar a partir do afeto. “Você só vai fazer moda dignamente se você a ama, se ama, ama todos os processos da cadeia, os ingredientes e honra aquilo que é um trabalho manual”, apontou. “Portanto, a inteligência artificial é capaz de muita coisa, mas ela não vai ser capaz de amar. E só se faz moda com amor”.
Entre metáforas e críticas atuais, Jum Nakao encerrou sua participação no Interfashion Brasília 2025 deixando uma bela reflexão para o público. Se em 2004 ele já denunciava uma indústria em risco de perder sua alma, em 2025 sua fala se transforma em convite para repensar como estamos vivendo essa forma de arte. Moda é sobre pessoas, não sobre coisas; sobre vestir corpos, não cabides; sobre traduzir o invisível em forma de roupas. E quando feita com amor, a moda não só cobre. Na verdade, ela revela.
Confira o desfile A Costura do Invisível, de Jum Nakao: