Ao decidir que o governo federal não pode mais perseguir o piso da meta fiscal, mas sim o centro desse objetivo previsto na regra do arcabouço para cumprir as normas constitucionais, o Tribunal de Contas da União (TCU) lançou luz sobre um problema recorrente nas contas públicas e também nas questões de interpretação das leis, segundo especialistas. Eles reconhecem que esse expediente vinha minando a credibilidade das contas públicas e avaliam que, agora, será preciso buscar uma solução ou mesmo aperfeiçoar as regras atuais.
Um dos principais problemas é que as projeções do governo indicam que a dívida pública será estabilizada em 10 anos com o arcabouço, mas as autoridades consideram, nessa estimativa, o cumprimento do centro da meta e não do limite inferior, o que configura uma contradição. Dessa forma, o tempo necessário para estabilizar a dívida pública será muito maior se o objetivo fiscal continuar sendo o piso da meta.
“A decisão do TCU lança luz sobre uma controvérsia importante acerca da meta fiscal. A equipe econômica afirma que está perseguindo o centro da meta, o que é compatível com o cumprimento da determinação constitucional de buscar a estabilização da dívida pública em 10 anos. Por outro lado, fica claro que, em função da impositividade do Orçamento, a limitação de despesa (contingenciamento) busca apenas o limite inferior, o que não estabiliza a dívida via execução orçamentária, como determina a própria Constituição”, destacou o economista-chefe do Asa, Jeferson Bittencourt.
Desde 2016, há conflitos entre emendas constitucionais para o cumprimento das regras fiscais, como a do Orçamento impositivo, de 2019, que acabou limitando o contingenciamento de gastos e deu mais poderes ao Legislativo sobre a peça orçamentária. Em nota divulgada após a decisão do TCU, na quarta-feira (24/9), os ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento (MPO) destacaram esse problema ao relembrar que o Congresso Nacional rejeitou a alteração constitucional proposta pelo Poder Executivo por ocasião da apresentação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 45/2024), que tratava da reforma tributária, “que franqueava maior flexibilidade à execução orçamentária para reforçar o cumprimento das metas fiscais”.
Na decisão do TCU, inclusive, o órgão afirma que há lacunas normativas entre a LC 200/2023 e a LDO de 2025 “no que se refere à preservação das despesas discricionárias, tendo em vista as necessidades de contingenciamento para o cumprimento da meta de resultado primário e de bloqueios para observância dos limites individualizados de despesa”.
Na avaliação de Bittencourt, uma solução para o problema da impositividade do Orçamento não necessariamente precisa passar por uma PEC, “que já demonstrou dificuldade política de aprovação no Congresso”. “Se a meta fosse estabelecida na LDO, deixando claro que a banda serve para acomodar choques negativos de receita ou créditos extraordinários, boa parte dos problemas estaria resolvida”, sugeriu.
Na avaliação dos analistas, o governo passou a perseguir o piso da meta fiscal constantemente, colocando em xeque a credibilidade do arcabouço e do compromisso com o equilíbrio fiscal. “Perseguir o piso da meta não é bom do ponto de vista da credibilidade da regra fiscal. A lei do novo arcabouço fiscal estipulou a tolerância em torno do centro da meta para acomodar choques. E, quando o Executivo persegue o piso da meta, as expectativas dos agentes automaticamente se ajustam”, explicou o especialista em contas públicas Alexandre Andrade, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal.
Regras do arcabouço
Vale lembrar que o arcabouço fiscal tem duas regras que devem ser seguidas: a meta fiscal, que possui uma banda de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima ou para baixo, e o limite para o crescimento de despesas, de até 2,5% acima da inflação, desde que não supere 70% da taxa de crescimento da receita. Neste ano, a meta é de déficit primário zero, com um limite de até R$ 31 bilhões para o rombo fiscal. E, quando há previsão de descumprimento da regra de despesa, o governo bloqueia gastos — que são mais difíceis de desbloquear — e, quando há risco de descumprimento da meta, o governo acaba fazendo o contingenciamento de despesas.
No relatório de avaliação de receitas e despesas do governo federal, divulgado na última segunda-feira (22), o governo aumentou a estimativa para o rombo fiscal de R$ 26,8 bilhões para R$ 30,2 bilhões — ainda dentro do limite da meta. Logo, o contingenciamento adicional seria de R$ 30,2 bilhões, o equivalente ao déficit primário atual projetado, mas, diante dos últimos dados da execução orçamentária, é pouco provável que o governo consiga reduzir esse volume de despesa. A previsão de bloqueio foi ampliada em R$ 1,4 bilhão, para R$ 12,1 bilhões, mas o governo não previu nenhum contingenciamento.
De acordo com fontes do TCU, o Tribunal não fez uma recomendação, mas informou ao Ministério do Planejamento e Orçamento e à Fazenda que a adoção do limite inferior da meta não é compatível com as normas. Assim, no fim deste ano, caso seja comprovado o descumprimento legal das regras, e após o contraditório e ampla defesa, caberá a aplicação de multa aos gestores responsabilizados.
Na avaliação de Andrade, o governo dificilmente conseguirá contingenciar R$ 30 bilhões em despesas nos últimos três meses do ano, ou mesmo encontrar uma fonte de receita nesse mesmo montante para cumprir a decisão do TCU.
O economista também reconheceu os riscos para a dívida pública se o governo persistir em buscar o piso da meta fiscal, pois os agentes financeiros passam a dar mais peso à evolução da dívida bruta em proporção ao PIB do que propriamente ao cumprimento das regras fiscais no acompanhamento da situação fiscal do país. “O Executivo pode até entregar o resultado primário dentro da meta, mas, se a dívida continua subindo, é sinal de que o resultado primário não está sendo suficiente”, alertou o diretor da IFI.
Dívida crescente
Conforme dados do Banco Central, em julho, a dívida pública bruta estava em 77,45% do PIB, dado 5,77 pontos percentuais acima da taxa registrada em dezembro de 2022, de 71,68% do PIB, antes do início do atual governo.
Essa taxa é inferior ao pico de 87,42% do PIB de setembro de 2020, no auge da pandemia da covid-19, mas vem crescendo desde janeiro deste ano, quando estava em 75,65% do PIB. E, pelas projeções da IFI, em 2026, esse endividamento ultrapassará 80% do PIB — patamar preocupante para países emergentes com taxa de juros elevada —, chegando a 82,4% do PIB.