Por Luiz Recena Grassi*
“Pela primeira vez tive medo”. Com gestual comedido, a mulher explicava ser veterana de ataques russos nesses três anos de conflito. Só que, dessa vez, o ataque a Kiev e arredores ficou acima de qualquer experiência anterior. Nuvem robusta de mísseis e drones cobriu a capital da Ucrânia no início da semana, com efeitos devastadores.
O ataque atingiu alvos militares, civis e zonas residenciais, deixando um rastro de vítimas fatais e dezenas de feridos. Razão russa: retaliação pelos recentes e também mortíferos ataques realizados pelas forças ucranianas a territórios da Rússia, com destaque para a operação aérea contra aeroportos e pontes.
A Ucrânia reagiu na mídia, sem pejo sobre o que fez e com estridência nas denúncias sobre o que sofreu. Embora seus principais interlocutores não se comovam mais com isso, os fatos são ruins para os dois lados.
A Rússia emite notas de conteúdo neutro e a Ucrânia toca seu tambor em diferentes teatros europeus. É o máximo que a Europa pode oferecer a Kiev. De resto, só promessas sem projetos de execução imediata. O sonho europeu de exércitos modernizados e armas novas produzidas em casa está outra vez a ser adiado.
Os Estados Unidos, principal fonte de verbas, não abre suas bolsas depois que o presidente, Donald Trump, tomou posse. E o desejo do novo secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Mark Rutte, de que cada membro separe cinco por cento de seu orçamento para defesa e produção de armamentos, está a dar com os burros n’água.
A Espanha declarou que não vai participar desse esforço bélico. Itália, Portugal e outros não querem ouvir sobre o tema. Eles não têm dinheiro. E quem tem alguma verba está guardando para si.
Alemanha, Inglaterra e França estão juntas nesse bloco. Os poucos recursos existentes terão aplicação prioritária na modernização de seus próprios sistemas de defesa, das suas indústrias armamentistas e exércitos.
A Ucrânia agita seus malabares, mas está a conseguir pouco, quase nada além de bons espaços midiáticos. Com o suporte de grupos de estudos das Organização das Nações Unidas (ONU), Kiev informou a ocorrência de 5.144 casos de baixas civis no decorrer deste ano; sendo 859 mortos e 4.285 feridos causados pelos ataques russos. É um aumento notável em relação ao ano passado e ao começo do conflito armado. Nuvens cinzentas, sombrias, continuam a engravidar nos limites dos conflitos.
O preço do barril de petróleo tipo Brent teve aumento de 15% depois do acirramento dos ataques entre Israel e Irã. Isso traz efeitos colaterais para o gás natural e outras dezenas de detalhes produtivos da economia mundial, da Europa em particular.
Na região em guerra, capitaneada pelo Irã, são produzidos 30% do petróleo mundial. Isso provoca efeitos colaterais e a Rússia já aposta em faturar. Europeus dependentes de petróleo e gás, que estavam a namorar saídas sem os russos, terão de rever posições.
A Ucrânia perde outra vez. Moscou, que há poucos dias comemorou um crescimento de 4,1% da economia nos últimos 12 meses, ganha de novo. Teve reunião internacional em Petersburgo e o governo instou a uma plateia de empresários e banqueiros da região, e uns poucos americanos, a que voltem a investir no país. Promete bons retornos, à espera, sempre, da liberação dos US$ 300 bilhões ainda congelados em bancos da Suíça, da Bélgica e dos Estados Unidos. São, também, dividendos, tristes, dos conflitos armados.
O CORREIO SABE PORQUE VIU.
Estava lá. A fila em Moscou era de instituição e aprendizado. Ela podia ser coletiva e generosa, se ocorria dentro do universo de um ministério, ou de uma repartição pública. Na hora das grandes refeições, por exemplo, ela se manifestava íntegra, com todos os detalhes a funcionar. No almoço, um refeitório abria suas portas às onze e meia e até treze horas a fila estava lá, ativa. Se um comensal chegasse só, penava.
Quem tinha amigos e camaradas é que se dava bem. A qualquer momento, arrumava-se um lugar para o atrasado. Era o hábito, que punia e irritava o novato. Melhor mudar de horário, comer mais tarde. Fora dali, nas ruas, a fila tinha nova versão. Não cabiam os grupos, mas o direito de compra. Ou seja, chegar ao fim de uma oferta de momento, nas esquinas e bairros, dava-lhe ainda o direito de comprar o que havia no estoque. Tudo! Ou quase.
Certa vez, na ilusão de comprar laranjas, esperei atrás de uma senhora. Eram dois sacos, talvez 10 dúzias. Ela comprou os dois sacos e fiquei, com cara de pasmo, a vê-la passar e sumir na esquina. Ao consultar meus amigos, dois conselhos: se chegar primeiro compre mais do que necessita; se chegar mais tarde negocie uma compra paralela. Depois, faça o negócio: ou troca por outro produto ou um dinheirinho a mais. Sempre vem bem. Entendido isso, até as festas melhoravam.
*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou