ARTIGO: Tristes dividendos dos conflitos armados

Embora seus principais interlocutores não se comovam mais com isso, os fatos são ruins para os dois lados

Um morador de um prédio residencial de vários andares limpa os escombros de seu apartamento danificado após um ataque de drones em Kiev, em 25 de maio de 2025, em meio à invasão russa na Ucrânia. A Rússia lançou um número recorde de drones contra a Ucrânia e matou 12 pessoas em todo o país, disseram autoridades em 25 de maio, mesmo com Kiev e Moscou concluindo sua maior troca de prisioneiros desde o início da guerra. (Foto de Sergei SUPINSKY / AFP)

Por Luiz Recena Grassi*

“Pela primeira vez tive medo”. Com gestual comedido, a mulher explicava ser veterana de ataques russos nesses três anos de conflito. Só que, dessa vez, o ataque a Kiev e arredores ficou acima de qualquer experiência anterior. Nuvem robusta de mísseis e drones cobriu a capital da Ucrânia no início da semana, com efeitos devastadores. 

O ataque atingiu alvos militares, civis e zonas residenciais, deixando um rastro de vítimas fatais e dezenas de feridos. Razão russa: retaliação pelos recentes e também mortíferos ataques realizados pelas forças ucranianas a territórios da Rússia, com destaque para a operação aérea contra aeroportos e pontes. 

A Ucrânia reagiu na mídia, sem pejo sobre o que fez e com estridência nas denúncias sobre o que sofreu. Embora seus principais interlocutores não se comovam mais com isso, os fatos são ruins para os dois lados. 

A Rússia emite notas de conteúdo neutro e a Ucrânia toca seu tambor em diferentes teatros europeus. É o máximo que a Europa pode oferecer a Kiev. De resto, só promessas sem projetos de execução imediata. O sonho europeu de exércitos modernizados e armas novas produzidas em casa está outra vez a ser adiado. 

Os Estados Unidos, principal fonte de verbas, não abre suas bolsas depois que o presidente, Donald Trump, tomou posse. E o desejo do novo secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Mark Rutte, de que cada membro separe cinco por cento de seu orçamento para defesa e produção de armamentos, está a dar com os burros n’água. 

A Espanha declarou que não vai participar desse esforço bélico. Itália, Portugal e outros não querem ouvir sobre o tema. Eles não têm dinheiro. E quem tem alguma verba está guardando para si. 

Alemanha, Inglaterra e França estão juntas nesse bloco. Os poucos recursos existentes terão aplicação prioritária na modernização de seus próprios sistemas de defesa, das suas indústrias armamentistas e exércitos. 

A Ucrânia agita seus malabares, mas está a conseguir pouco, quase nada além de bons espaços midiáticos. Com o suporte de grupos de estudos das Organização das Nações Unidas (ONU), Kiev informou a ocorrência de 5.144 casos de baixas civis no decorrer deste ano; sendo 859 mortos e 4.285 feridos causados pelos ataques russos. É um aumento notável em relação ao ano passado e ao começo do conflito armado. Nuvens cinzentas, sombrias, continuam a engravidar nos limites dos conflitos. 

O preço do barril de petróleo tipo Brent teve aumento de 15% depois do acirramento dos ataques entre Israel e Irã. Isso traz efeitos colaterais para o gás natural e outras dezenas de detalhes produtivos da economia mundial, da Europa em particular. 

Na região em guerra, capitaneada pelo Irã, são produzidos 30% do petróleo mundial. Isso provoca efeitos colaterais e a Rússia já aposta em faturar. Europeus dependentes de petróleo e gás, que estavam a namorar saídas sem os russos, terão de rever posições. 

A Ucrânia perde outra vez. Moscou, que há poucos dias comemorou um crescimento de 4,1% da economia nos últimos 12 meses, ganha de novo. Teve reunião internacional em Petersburgo e o governo instou a uma plateia de empresários e banqueiros da região, e uns poucos americanos, a que voltem a investir no país. Promete bons retornos, à espera, sempre, da liberação dos US$ 300 bilhões ainda congelados em bancos da Suíça, da Bélgica e dos Estados Unidos. São, também, dividendos, tristes, dos conflitos armados.

O CORREIO SABE PORQUE VIU. 

Estava lá. A fila em Moscou era de instituição e aprendizado. Ela podia ser coletiva e generosa, se ocorria dentro do universo de um ministério, ou de uma repartição pública. Na hora das grandes refeições, por exemplo, ela se manifestava íntegra, com todos os detalhes a funcionar. No almoço, um refeitório abria suas portas às onze e meia e até treze horas a fila estava lá, ativa. Se um comensal chegasse só, penava. 

Quem tinha amigos e camaradas é que se dava bem. A qualquer momento, arrumava-se um lugar para o atrasado. Era o hábito, que punia e irritava o novato. Melhor mudar de horário, comer mais tarde. Fora dali, nas ruas, a fila tinha nova versão. Não cabiam os grupos, mas o direito de compra. Ou seja, chegar ao fim de uma oferta de momento, nas esquinas e bairros, dava-lhe ainda o direito de comprar o que havia no estoque. Tudo! Ou quase. 

Certa vez, na ilusão de comprar laranjas, esperei atrás de uma senhora. Eram dois sacos, talvez 10 dúzias. Ela comprou os dois sacos e fiquei, com cara de pasmo, a vê-la passar e sumir na esquina. Ao consultar meus amigos, dois conselhos: se chegar primeiro compre mais do que necessita; se chegar mais tarde negocie uma compra paralela. Depois, faça o negócio: ou troca por outro produto ou um dinheirinho a mais. Sempre vem bem. Entendido isso, até as festas melhoravam.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou