ARTIGO: Planos desejados e realidades nem sempre

Mesmo quem antes dava total apoio a Kiev hoje está a criticar o feixe de ideias apresentado

Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em discurso na Assembleia-Geral da ONU

Por Luiz Recena Grassi

O Plano da Vitória apresentado na reunião com a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi mais uma derrota do ucraniano Volodimir Zelensky. Os ministros de Defesa e a cúpula da Organização queriam, também aproveitar a reunião antecipada e apresentar o novo chefe, ou secretário-geral Mark Rutte, um holandês jovem e duro político de direita, mas que sabe o que faz e soube chegar onde queria. Apoia a Ucrânia segundo a receita da UE, quer a Otan em distância regulamentar do conflito, acha muitas vezes que Zelensky exagera em ações de marketing e quer manter canais de conversa com o líder russo Vladimir Putin.

O “plano” está a ser considerado “delírios de Zelensky” por boa parte dos analistas europeus desse conflito. Mesmo quem antes dava total apoio a Kiev hoje está a criticar o feixe de ideias apresentado. Duas reações contrárias foram registradas: Hungria e Eslováquia. A grande maioria dos países preferiu pedir mais tempo para estudos. Alemanha e França, com apoio de ingleses e americanos não foram além dos afagos a heroicos esforços e tapinhas nas costas. Todos com uma certeza, verbalizada por Rutte: Ucrânia na Otan, ainda não. Há que cumprir os trâmites. Armas hipersônicas e ações mais profundas em território russo, Biden respondeu: não e não. O yanque, inclusive bateu forte em tecla nova: está na hora de pensar no um fim desse confronto bélico. Fontes diplomáticas americanas estariam negociando com fontes diplomáticas russas. Ninguém deu detalhes. Ao mesmo tempo ninguém negou formalmente. No passado mês de setembro houve encontro entre as duas partes à sombra da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Certamente não foi para conversar sobre o que havia de melhor na temporada da Brodway.  

Restam as cláusulas secretas, que começam a ser reveladas. Zelensky oferece a exploração das riquezas do subsolo do seu país, minérios que podem ser enriquecidos; terras aráveis para vários grãos; e mais um delírio: soldados ucranianos, já treinados, para as fileiras da Otan para que esta possa enfrentar russos ainda distantes de um confronto territorial. A Otan não cogita isso. Mark Rutte pensa em manter os russos tensos, mas sem embates diretos. No front de batalha nenhum registro ucraniano a merecer pompa ou barulho. Do lado russo, novas conquistas de vilas e cidades do Dombass e uma novidade: tropas de Kiev começam a recuar na região de Kursk, algo carregado de simbolismo.

Enquanto isso em Moscou, Vladimir Putin prepara a festa para a reunião de cúpula dos BRICS. Vai apresentar ideias novas sobre trocas e integração comercial mundiais. E vai falar, muito, de paz.

O CORREIO SABE PORQUE VIU.

Estava lá. O Partido Comunista da União Soviética morreu oficialmente ao cair da noite de 6 de novembro de 1991. Era quarta-feira e uma chuvinha fina e fria confirmava que estávamos em meados de outono. A partir dali só mais frio, chuva e neve. Até março ou abril do ano seguinte. Na agência, plantão noturno em idioma russo, um camarada com a cabeça entre as mãos não sabia explicar nada, nem o que o futuro tinha reservado para ele. Era membro do partido e tinha sido preparado 40 anos de vida para aquele cargo. Oito andares abaixo, um grupo de mulheres da seção de telex, comemorava. “Já vai tarde”, diziam para o partido do qual não eram membros.

A voz corrente não trazia boas perspectivas: “vão derrubar estátuas, inclusive a de Lenin, na praça de Outubro”, era o que os boatos alarmavam. Momento delicado, exigia testemunhas. Éramos poucos, entre diplomatas e jornalistas, mas fomos. Ao chegar já havia vários cordões de isolamentos ao redor da estátua. Poderia ser derrubada, mas não naquela noite. Ficou lá. A história bem feita impõe respeito. Telefone toca na madrugada do bairro Dínamo. O velho amigo pergunta: “tens aí dois mil dólares cash?”. Não. Ele suspirou: “deixamos de ganhar muito mais, o sub comitê do partido para o bairro quer vender, agora, um fardo de jaquetas de couro, alemão, que pode render até dez mil”. Só ali, num microcosmos. Imagine-se em 17 milhões de quilômetros quadrados. Afinal o dono das coisas morrera e não havia herdeiro designado. Todos os estoques, de carros a remédios, de roupas a sapatos, os estoques não chegaram ao “black friday”.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou