Por Luiz Recena Grassi*
As propostas de paz não avançaram e o conflito entre Rússia e Ucrânia termina o ano como começou. Quase. Os otimistas apostaram em sinais mais claros, que não vieram. Os pessimistas diziam que nada iria acontecer, mas não foi assim. Muita coisa aconteceu, a começar pelo quadro das operações, em que a defesa ucraniana perdeu espaço nas três frentes em luta e enfrenta dificuldades operacionais, somente resolvidas com recuos e entrega de posições. O exército de Kiev ainda sobrevive em Kursk, a última grande carta na manga de Volodymyr Zelensky até as prováveis negociações no começo do novo ano, com a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos. Sem garantias, pois a Rússia, no seu sistema devagar e sempre, já teria recuperado mais de 60% do território perdido há três meses.
Analistas internacionais, agora multiplicados nos EUA, na Inglaterra e nos países europeus que decidem, dizem que a situação não é boa: faltam armas, munições, roupas, comida e dinheiro. As verbas, quando chegam, são curtas e boa parte já vem carimbada, isto é, para ser gasta em itens recomendados pelos credores. A União Europeia (UE) se repete: está e estará sempre ao lado da Ucrânia, falácia que pouco aporta em coisas práticas como armas e verbas. A última promessa, de US$ 1 bilhão, não declarou origem nem apresentou planilha de gastos e despesas.
Outro bilhão de dólares está mais visível, mas não tranquilo; é o que estaria a ser liberado via Banco Mundial, com apoio de Biden, diretamente da conta congelada da Rússia no sistema financeiro internacional. É uma situação delicada, vizinha do roubo, da estafa, da tunga do dinheiro russo gerado nos tempos em que todos se amavam e os depósitos eram feitos em bancos suíços, a maior garantia desse mercado. Quem guarda esse dinheiro não quer entregá-lo. Sabem que se isso ocorrer um dia a conta chegará. Só Joe Biden insiste em usar a mão do alheio, para deixar mau presente de despedida para Trump. Assim foi a permissão de usar mísseis para atacar a Rússia. Pura provocação para Trump e Vladimir Putin. Este prometeu retaliações e fez algumas. Boa parte da Ucrânia está sem energia. O acordo de levar gás russo através da Ucrânia para Eslováquia e outros países não foi renovado e expira no fim do ano. Nova crise aberta pela Ucrânia. Contra a Ucrânia.
Enquanto decisões maiores não são anunciadas, sobra espaço para a guerra da mídia de manipulação. O ruim é russo; o correto, ucraniano. Meios europeus e latinos, domesticados há tempos, fazem coro e multiplicam o que recebem de graça dos ingleses e norte-americanos. A guerra fria não voltou, mas o inverno está a chegar.
O CORREIO SABE PORQUE VIU.
Estava lá. Triiimm! Trom, trom! Triiimm! Troom! O som rouco da campainha do apartamento denunciava a falta de manutenção. Cerca de 90% das habitações moscovitas tinham esse barulho. Difícil relação entre Estado dono e povo inquilino. Taxa de ocupação, até cinco por cento do salário, era irrisória no final do século 20. Os mais cuidadosos e jovens buscavam soluções informais. Recalcitrantes esperavam o paternalismo. Esperavam e esperavam, nunca se cansavam. De todo modo, às nove da madrugada não dava para atender. O fuso horário de seis horas jogava a favor do correspondente e contra a civilização matutina, igual de chata em qualquer regime ou latitude.
O fim de ano tinha sido bom e os ruídos e gostos brasileiros ainda estavam bem vivos na memória. O inverno, impiedoso, é que chamava à realidade: era frio, mas haveria festa. Afinal, 40 anos é um marco. Deve ser bem comemorado. Começou com um discreto almoço com aquarianos brasileiros, com caipirinha de verdade e arroz carreteiro, de charque gaúcho, trazido na mala, no meio das roupas. Tinha mais coisas: saladinhas, peixes defumados, caviarzinhos, vodka e música brazuka, música para domar pranto e saudade de filhos e amigos que torravam ao sol dos trópicos.
Iemanjá quer festa. Dois de fevereiro é o dia, dela e do correspondente. As comemorações espicharam-se no tempo. Os soviéticos queriam saber tudo, festejar também. Tambores do Ilê abriam trabalhos musicais, com espaço para todos os demais ritmos e vozes. Bebeu-se, bailou-se. No meio de tanta festa, pausas para descanso. Numa delas, triiimm! Era de tarde, dava para atender. Com a ajuda dos amigos russos a mensagem foi finalmente entregue: duas tortas de aniversário, uma do lugar do bairro, onde fazia as compras e outra da vizinha, uma veterana médica, que tudo organizara. Alguém soprou e o correspondente foi homenageado. “Isso é raro, eles gostam mesmo de você”, disseram os amigos russoviéticos. O ronco da campainha estimulou gritos de alegria e cantorias.
*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou