ARTIGO: Medo, Natal armado e paz distante

As condições nas frentes não são muito diferentes. Não há caos, mas desorganização e falta de tudo: armas, munições, mantimentos, gente. Faltam soldados para lutar

Por Luiz Recena Grassi*

Chegou o general inverno trazendo frio e neve para os Montes Urais. O clima da região continua implacável: após calores outonais o termômetro embica para baixo e a temperatura vai caindo, devagar e constante. Pouca presença do zero e o negativo acaba vencendo. Sempre. A partir daí nem reza forte aquece. Em Kiev, capital da Ucrânia, já fez zero. Os bombardeios russos com mísseis e drones não ajudam. Dificultam ainda mais a situação. Só nos últimos dias, um bombardeio pesado, duradouro e com armas de vários tipos deixou sem aquecimento um milhão de residências, o que dá número um pouco maior de pessoas. Antes, quem tinha medo resistia. Agora com medo e frio ficou pior. Os russos acenam com o temido míssil Oreshnik, o intercontinental que pode carregar seis ogivas nucleares, cada uma com seis ogivas menores. É o caos.   

As condições nas frentes não são muito diferentes. Não há caos, mas desorganização e falta de tudo: armas, munições, mantimentos, gente. Faltam soldados para lutar. Os que estão lá sofrem de cansaço e privações. Os veteranos aguentam, os jovens não. A reposição não acontece nos moldes dos manuais. Fontes americanas sóbrias na Europa, com fontes de Londres, Washington e Kiev, estimam em 10 mil homens/mês o deficit do exército ucraniano. Seriam 30 mil vítimas/mês (mortos e feridos), e 20 mil na reposição. Faltam 10 mil. Disseram os especialistas militares que este é um quadro pintado com tintas de seis meses. A realidade é mais dura.

Em Moscou, acusadas, lideranças falaram sobre retaliação e culpas dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A decisão americana de permitir o uso de suas armas pela Ucrânia para atacar território da Rússia, o que foi feito; e a decisão “vai com as outras” do Reino Unido autorizando o uso de velhos mísseis, montam um gesto que se quis importante. Não foi. E o anúncio de mandar minas terrestres, logo em seguida, nada ajudou. Fez vir o Oreshnik. O governo ucraniano está a implorar mais armas. A Europa não ouve. Quando ouve nega ajuda. A Alemanha ouve e diz: mísseis Taurus não vão mais. Há muitos interesses cruzados entre a Alemanha e a Rússia. E os alemães não confiam na Ucrânia, temem o que ela faria com as armas germânicas. O resto é retórica. Temperada por um molho alemão forte em forma de eleições na virada do ano. Olav Scholz pode perder o cargo. Eram sombrias as expectativas de duas jornalistas e duas pesquisadoras de áreas de defesa, ao encerrar um programa de conversas sobre a Europa e o conflito, na televisão da Deutsche Welle, na noite de quinta.

As quatro, unânimes, revelaram um segredo de Polichinelo: os países da União Europeia e OTAN não estão a entender-se. É enorme a diferença de opinião e posições. Todos estão tratando de cuidar primeiro do que é seu. Do outro lado do Atlântico, o governo que sai pediu ao Congresso “um agradinho” de despedida para Kiev: U$ 24 bilhões. Estilo “made in USA”: U$ 16 bilhões, dois terços, para repor o estoque de armas do Pentágono; U$ 8 bilhões, para ajudar nas compras e salários, sob o controle da Otan e de um fundo dirigido por países aliados. Resumo: verba que ficará longe do governo da Ucrânia. Tudo junto traz opinião forte: o mundo, ou parte dele, está sob o domínio do medo. Mesmo com gestos de paz avançando.

O CORREIO SABE PORQUE VIU. 

Estava lá. Bonita e fresca manhã de abril, com solzinho tímido e garoa ligeira. Oficiais da aeronáutica do Brasil visitam a URSS. Tiveram direito a show na Base Aérea de Kubitza, perto de Moscou. Os aviões dali levariam três minutos para chegar ao Kremlin. Evento com discreta boca livre, por ser de manhã. Lá estavam porém os canapés de caviar, preto e vermelho, um espumante meio-gelado e a vodka de bom rótulo. Tudo a preceito. Na hora dos aviões a novidade, sucesso do momento, o Sukhoi-27, o SU27. Coisa séria! Na hora das manobras só não fez chover. Entre as acrobacias apresentou-se decolando na vertical. É avô do SU35S, que anda a encantar o mundo e a meter medo em ucranianos e amigos. E também do TU-57, ainda na reserva. Jornada gloriosa. Nosso Brigadeiro passou mais uns dias e encantou-se com a pequena imprensa brasileira. Na despedida perguntou se precisávamos de qualquer coisa. Era só pedir e eles dariam um jeito de realizar. Ninguém quis nada. Só eu. Pedi ao brigadeiro dois ou três frascos de Comfort. Estava a cuidar da própria roupa e a reclamar que estava áspera. Não havia amaciantes em Moscou. Os bolcheviques responsáveis pelos caças e pelas naves espaciais não passavam o saber tecnológico para a indústria doméstica, para o bem estar da população. E o inusitado entra na história, a explicar coisas simples, ajudar a entender porque a indigitada união das repúblicas feneceu.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou