ARTIGO: Kiev, Moscou, Cerimônia do adeus

Na Ucrânia, além do título, há o herói sem dinheiro, sem armas e sem obra filosófica, o que é pior

Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em discurso na Assembleia-Geral da ONU

Por Luiz Recena Grassi*

De um lado a vitória esperada e do outro a derrota prevista. Durante três anos, dois lados disputaram a preferência nas apostas. De um lado a outro os que tinham a expectativa da vitória contavam razões para tal; do outro, a perspectiva da derrota aumentava as fontes (de sofrimento) e entre lágrimas e lamúrias pediam armas e dinheiro para realizar o sonho de seus padrinhos norte-americanos. A história foi chamada para auxiliar Rússia e Ucrânia. 

Munique, 1937, reunião entre Inglaterra, França, Alemanha e Itália. Sem a União Soviética. Chamberlain dizia que Stálin não entraria na guerra. Hitler convenceu europeus que não atacaria. Atacou logo e levou parte da região de cultura majoritária alemã. Pouco depois, 1939, a URSS, sozinha, fez pacto de não agressão com os nazistas. Os ministros alemão Von Ribbentrop e russo Molotov. Durou pouco. Em dois anos, a Alemanha invadiu a Rússia. Ninguém socorreu os russos. Só para o golpe final houve coordenação de esforços de URSS, Inglaterra e EUA. A Ucrânia não existia. 

A França dividiu-se entre colaboracionistas (Vichy) e resistência, pequena e desarmada, porém heroica. Quando acabou a guerra a reunião de paz foi em Yalta, na Rússia. A França não foi convidada. A Ucrânia não existia. O fim do comunismo esquartejou a Rússia. Com bom dinheiro americano alguns presidentes, republicanos ou democratas, ajudaram a enganar os dirigentes do Kremlin.  A promessa maior era o não ingresso dessas novas Repúblicas na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os americanos não cumpriram. E o ingresso na Otan foi tecendo um cerco nas fronteiras da Rússia. 

Mais de uma vez os russos pediram o cumprimento dos acordos pós-soviéticos. A nova República da Ucrânia era a bola da vez e um golpe letal contra a Rússia. Recebeu vasta concentração de tropas na sua fronteira, junto com um massacre midiático em favor do fortalecimento da Ucrânia. Os ucranianos exibiram músculos que não tinham, armas que não eram deles. 

Na Ucrânia, houve caos político temporário até o surgimento de um comediante reconhecido e com aptidão política. Financiado, incentivado pelo governo armamentista de Joe Biden e Antony Blinken. Aumentou a carga muscular e foi passear na fronteira. Foi corrido e agora faz de tudo para manter-se no conflito de três anos. Trump reeleito tenta cumprir o que avisou: cortar dinheiro e armas de Kiev e iniciar logo conversações com Putin. Sem a Ucrânia. Sem Volodymyr Zelensky. 

Contatos já começaram em Riad. Sem a Otan e sem a União Europeia. Donald Trump estima em mais de U$ 300 bilhões os gastos com a aventura de Biden-Kiev; alemães dizem que são menos de U$ 200 bilhões. Ninguém confirma. França e Estônia darão U$ 20 bilhões agora, sem detalhes. Mesa para quem tem fichas e armas. Os outros ficam do lado de fora, a gritar slogans de protesto. Embutido no imbróglio, está o fim da Otan, uma promessa dos Estados Unidos faz há 30 anos para agradar o Kremlin. Ninguém na UE protestou. No seu magnífico A Cerimônia do Adeus, Simone de Beauvoir narra e comenta os últimos 10 anos com Sartre. Na Ucrânia, além do título, há o herói sem dinheiro, sem armas e sem obra filosófica, o que é pior. 

O CORREIO SABE PORQUE VIU. 

Estava lá. Bizarros fatos ocorriam em Moscou no final da Perestroika. Entre outros problemas, o governo enfrentava a guerrilha do desabastecimento: dias com nada nas prateleiras; outros tendo o que comprar nas lojas estatais, nas grandes e nas de bairro. Comércio de rua frenético, mas também dependente do abastecimento exógeno. Caos econômico sem quaisquer teorias e, na prática, com ausência cruel de víveres. Às vezes, raras ofertas de produtos diferentes.

A galinha húngara foi vedete durante boas semanas. Grande, gorda e a bom preço, fácil de comprar nas esquinas dos bairros. Para felicidade geral, o correspondente brazuka gostava de cozinhar. Cozinha de carestia vira criativa. Lembrei-me de um prato, galinha com ervilhas, tradicional em pequena cidade do sul do Brasil, maior produtora de ervilhas da região.  Muitas receitas andavam por lá. A Bulgária também produzia legumes. Lojas de moeda forte tinham sacos congelados de outros vegetais. Tudo isso mais uns embutidos e defumado locais saborosos ajudavam a fazer misturados, grandes ensopados, dos bons. Melhor para quem andava na mesmice.  

Esse ensopado sobre o qual escrevo foi para 10, 11 pessoas. A galinha ficou macia, com um pouco de gordura e colorida. Na falta de melhor batismo chamou-se “Tropikalitskaya Kuritsa” (nome errado, claro). Galinha tropical. Dava para sentir, com destaque, os sabores do país tropical, realçados pela saudade e pela curiosidade russa. As fotos ficaram belas e as boas lembranças nos perseguem até hoje.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou