ARTIGO: Estranhos desígnios trazem a paz possível

O acordo inicial foi firmado pelo secretário do Tesouro norte-americano, Scott Bessent, e a vice primeira-ministra da Ucrânia, Yulia Svyrydenko. Tudo o que Trump pediu foi concedido. Tudo e mais um pouco

O encontro entre os dois líderes em Washington terminou com Trump repreendendo Zelensky e o acusando de não ser grato o suficiente pela ajuda fornecida pelos Estados Unidos para conter a invasão russa iniciada em fevereiro de 2022 - (crédito: Getty Images via AFP)

Por Luiz Recena Grassi*

O conflito Rússia-Ucrânia ainda não terminou mas já indica um provável e antecipado vencedor: Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. O primeiro sinal foi dado no meio da semana com a assinatura do acordo de exploração de terras raras ucranianas pelos norte-americanos. Ainda se sabe pouco sobre o que foi, de fato, acordado. É a fase de jogar para a plateia, onde, ocasião rara, há algum consenso: o quadro não deixou de ser complexo.

O acordo inicial foi firmado pelo secretário do Tesouro norte-americano, Scott Bessent, e a vice primeira-ministra da Ucrânia, Yulia Svyrydenko. Tudo o que Trump pediu foi concedido. Tudo e mais um pouco, inclusive, a exploração do setor de energia e gás do governo de Kiev.

Será formado um Fundo para a reconstrução da Ucrânia, com aportes iguais pelos dois países e divisão igualitária entre as partes, dos futuros lucros gerados por obras, empresas e todos os tipos de iniciativa que venham a gerar ganhos nos projetos a serem desenvolvidos nas regiões exploradas. Projetos a serem dirigidos por grupos iguais dos dois países.

Não houve garantias de apoio militar dos EUA à Ucrânia, embora haja garantias de que os americanos estarão por perto. Uma discreta vitória de Kiev que ainda ganhou o anúncio de aprovação de mais de US$ 50 bilhões em armas norte americanas. Não se sabe se novas, ou as que estariam nos paióis da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) à espera de um sinal.

De todo modo, são armas do estoque do Pentágono, o que direciona para esses cofres a maior parte desse bolo de dólares. Outra pequena vitória imediata é de que eventuais lucros do novo Fundo não irão diretamente para os cofres de Washington, como pagamento do que foi emprestado durante esses três anos de conflito armado. Uma verba estimada em US$ 175 bilhões até agora, em dinheiro direto dos EUA para a Ucrânia.

Os empréstimos indiretos, de outras fontes países, não entraram até agora em nenhum balanço. O que se sabe do acordo, portanto, é de que é bom para Volodomyr Zelensky, que insiste em uma boa foto e melhor ainda para Trump, que entrou no jogo há três meses e já tem o que comemorar. Outro ponto a destacar é a ausência do tema posse de terras conquistadas pela Rússia. Um discreto silêncio dos yanques e um assovio para numa janela de Kiev.

Trump disse o que pensa: terras conquistadas são russas, e a Criméia nem entra na discussão. Zelensky nega os territórios e repete o mantra de que a Criméia é ucraniana. É um caso Malvinas: que son argentinas, mas dominadas pelos ingleses que as chamam de Falcklands.

Na sombra e ainda em silêncio Vladimir Putin, na posição de vantagem de estar ganhando a guerra e aumentado o volume de territórios conquistados. Putin, agora, está mais preocupado com a festa dos 80 anos da vitória da União Soviética sobre os nazistas, em aliança com os Estados Unidos, e algum apoio inglês. A União Soviética perdeu, durante a feroz invasão do exército de Hitler, mais de 24 milhões de pessoas entre soldados e civis. Os países europeus, favorecidos pela vitória aliada, tem “esquecido” do papel desempenhado pela URSS. Terão bastante avivadas suas memórias no próximo dia nove de maio.

O CORREIO SABE PORQUE VIU

Estava lá. Costumavam ser bonitos os primeiros dias de maio em Moscou. Algum sol de manhã, chuvinha talvez no início da tarde. O dia nove de maio e simples de definir: Dia da Vitória. E um pouco complexo para entendê-lo em sua plenitude. Mais ainda não tendo muita idade adulta e não sendo soviético ou russo. No segundo ano recebi a almejada credencial e fui para a Praça Vermelha.

O bilhete, de 12×8, impresso a cores em papel mais grosso, era um misto de convite, credencial e passe livre. Peguei dois táxis naquela manhã e os dois motoristas fizeram caras de espanto ao passar por cinco barreias, até o pé da ladeira da Praça. Comemorava-se 45 anos da vitória e as duas horas seguintes foram de denso desfile de soldados e civis, quase sem espaço entre os grupos, a cantar hinos   contra o nazismo e o fascismo. Ao final, meia hora de armas: caminhões, tanques, mísseis pequenos, médios, grandes e muito grandes. Para dissuadir qualquer ideia ruim que andasse pelo mundo. Segundo ano, meu russo não era mais tão pobre e dava para enfrentar conversa.

Feito. Feliz, caminhei um pouco rumo ao trabalho, para mandar minhas notas. No caminho uma confeitaria aberta fez a felicidade: comprei duas tortas. A primeira para minhas amigas idosas, viúvas da guerra, que cuidavam dos serviços, E falei em russo, saudando-as pelo dia da vitória. Quem já era bem tratado virou queridinho. A segunda em casa, com amigos russos a rir do meu “patriotismo súbito”. Igualmente felizes pois viam que eu estava a aprender os códigos.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou