ARTIGO: Conflitos encerram paternalismo deEstado?

Não foi o que se viu. A eleição de Donald Trump foi o primeiro sinal do desmanche iminente (da Otan). Sólido sinal, ao mandar imediatamente a Moscou um negociador, ainda que sem poderes formais.

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Por Luiz Recena Grassi*

O holandês Mark Rutte tem muito medo de ficar órfão na idade adulta. Um órfão político. Nova autoridade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), assumiu no final do ano passado a rosnar e a mostrar os dentes com que iria morder o líder russo Vladimir Putin, exércitos e os brinquedos mortíferos dele. A paz, disse ele, viria nos moldes do novo chefe dos Estados Unidos e da base aliada na União Europeia (UE). Não foi o que se viu. A eleição de Donald Trump foi o primeiro sinal do desmanche iminente. Sólido sinal, ao mandar imediatamente a Moscou um negociador, ainda que sem poderes formais.

As conversações secretas, por serem assim, nada vazam. O pouco que transpira só informa novas posições de desembarque de aliados. Com as tradicionais promessas de alguma verba e meios físicos para a Ucrânia enfrentar a crise energética, que só piorou com os últimos ataques da Rússia, com Kiev e cidades principais a sofrer mais cada semana. As principais minas de carvão já estão sob controle russo. Em Kursk, onde segura ainda sua conquista, o exército ucraniano teria recuado e deixado para trás 63% do território. Os russos também usaram mísseis ATACMS (americanos) em ataque a Belgorod. Por fim, ironia de péssimo gosto, atacaram o Sul e acertaram a cidade de  Kryvy Rih. Ali nasceu Volodymyr Zelensky. Um míssil causou 14 vítimas fatais e vários feridos. 

Então, quando Trump vier, o quadro da união estará no mínimo confuso, desorganizado. Divididos entre o que fazer com o dinheiro russo congelado (maioria contra usá-lo, contra a tunga) e pela questão energética, as posições são díspares. Orban, da Hungria, criticou as últimas decisões dos EUA em boicotar a Rússia no mercado energético. Só aumentou os problemas. Pediu o fim imediato das sanções contra o Kremlin. Olaf Scholz, da Alemanha, revelou um cândido desejo de que Trump não corte todas armas para Kiev. Fico, da Eslováquia, deixou claro precisar da Rússia para não passar frio. Marcelo Rebelo, presidente de Portugal, torce para que os russos não devorem os ucranianos. Romênia e Bulgária estão sob forte ataque dos partidos pró-Rússia. Até a Áustria, antes um pouco fora da curva da discussão, acompanhando mais a maioria na UE, perdeu espaço interno, cedeu e seu governo vai negociar com o partido pró-Rússia. A Polônia tenta todas as ações possíveis para arranjar mais armas. Para si e para a Ucrânia. A Inglaterra fechou um acordo-quadro para durar cem anos e atuar em muitas frentes em ajuda à Ucrânia. O velho faro inglês sentiu o cheiro forte da reconstrução, que vai requerer tempo e muitos bilhões de dólares. Pode haver corrida por obras de Israel/Gaza, mas lá o volume de verba requerida é bem menor.

Então: Welcome Mr. Trump!   

O CORREIO SABE PORQUE VIU.

Estava lá. Antes mesmo da União Soviética dar seus últimos suspiros muitas coisas diferentes aconteceram para seus habitantes. Desde a descriminalização da posse do dólar e outras moedas até as inversões em pequenos negócios, associadas a parceiros de outros países. Daí para o mercado de trabalho não demorou muito, mas manteve nas alturas os índices de novidade, surpresa e até de espanto por parte dos velhos e jovens soviéticos, não só pelo fato de, agora, perderem o título de “Tovarich” (camarada) e ganhar o título de “Tchilaviek” (cidadão). Começou com o aluguel compartilhado: russos cediam parte de moradias para estrangeiros em busca de melhor aluguel para morar ou instalar escritórios comerciais. Com clientes de rádio no Brasil e outros países, aluguei duas horas por dia uma sala em um pequeno e especializado museu no centro de Moscou. Só abria ao público nos fins de semana. A desvalorização do salário funcional estimulava as duas únicas funcionárias. Pagava em dólares. Elas fechavam os olhos para receber e dividir. Milhares de negócios como esse foram feitos. Polichinelo mantinha seu segredo e a mulher de César reforçava o discurso de honestidade.

As coisas só se complicaram quando chegaram as médias e grandes empresas e foi preciso contratos formais para ingresso no mercado. A diferença de cultura falou mais alto: os soviéticos tinham turnos com mais folgas e bancos de pessoal reserva. Afinal,  o pilar teórico do velho regime era a classe trabalhadora. Quanto mais selvagem, mais difícil era a postura do capital na hora da negociação. Sem gritar, mas com argumentos imbatíveis, uma jovem e simpática russa, já gerente de um hotel em São Petersburgo, disse-me claramente: “para entrar aqui ele deverão pagar nossas exigências; não será como na terra deles, onde daqui para baixo (sinalizou com as mãos nos quadris) ele acham que podem e fazem tudo. No nosso, não!”. Se Mark Rutte está com medo de que os europeus aprendam russo, é bom prestar atenção, antes, na cultura do país.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou