ARTIGO: A solidão da estepe os desejos dos Brics

Vladimir Putin deixou Kazan contabilizando o apoio de dezenas de países além dos fundadores, sem problemas sobre diferentes visões de mundo

Por Luiz Recena Grassi*

A reunião dos Brics obteve sucesso de bom tamanho. Vladimir Putin deixou Kazan contabilizando o apoio de dezenas de países além dos fundadores, sem problemas sobre diferentes visões de mundo, com a presença do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, e uma lista de opções para a resolução do conflito armado contra a Ucrânia. Nas conversas pautadas sobre o último item ouviu críticas e conselhos. Ao final disse estar disposto para acordos de paz, mas deixou claro não confiar no comportamento da Ucrânia nem nos propósitos de Kiev neste momento. Restou evidente, o espírito da paciência política: esperar os resultados das eleições nos Estados Unidos, dia cinco de novembro.

As propostas de uma Bolsa de Cereais para regular preços e evitar especulações; e de um sistema internacional de pagamentos independente do dólar não serão fáceis de pôr em prática. Mais a segunda do que a primeira. A solidez das economias dos principais parceiros está diretamente ligada ao sucesso da Bolsa. China, Índia, África do Sul, Brasil, Irã e países árabes estão fortes, mas têm problemas específicos e relacionados a outras economias tipo EUA ou fortes europeus, notadamente Alemanha, França e Inglaterra. Há interesses cruzados e nem sempre coincidentes. Com o padrão dólar haverá ainda mais obstáculos. São muitas décadas tecendo essa renda de bilros. Mudar agora? Não há proposta melhor por enquanto. O espectro da guerra completa: escuro, pesado, que se espraia para muitos quadrantes. O Fundo Monetário Internacional (FMI) sinalizou que tudo acompanha e destacou a Bolsa de Cereais.

Só a questão coreana poderá atrapalhar. Depois de vários dias de chutes e plantações de propaganda um véu de certeza começa a surgir. O secretário de Defesa dos EUA diz que há soldados norte coreanos na Rússia. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) correu para dizer que sim, há mesmo. Ninguém diz quantos ou onde estão. A União Europeia vai atrás. A China nega e a Rússia nada diz. Mas o tema entrou em pauta e vai segurar títulos e manchetes por alguns dias. Há vídeos sem autoria e muita intriga. Certo é que há soldados na região Kursk. Talvez mil ou perto disso. Num universo de meio milhão serão gesto político. Na outra mão lembra-se: mais de 15 mil mercenários estrangeiros foram para Ucrânia desde o início da guerra. Muitos morreram, outros estariam por lá. Lembrou-se, também, que nos primeiros meses do conflito o segundo idioma mais falado nas hostes de Kiev era o polonês. O inglês era o terceiro. No balanço bélico a narrativa continua, a Rússia avança, a Ucrânia recua. Depois das eleições americanas haverá outra contabilidade. Poderá influenciar, mesmo sem poderes para mudanças estruturais no quadro de curto prazo. Iniciar conflitos é mais fácil do que encerrá-los.

O CORREIO SABE PORQUE VIU.

Estava lá. A política do Poder Soviético de integração regional cometeu erros. A hegemonia russa sobre os demais povos e culturas do antigo império produziu graves distorções e raiva. Os burocratas bolcheviques desenharam uma fórmula que pretendiam infalível: a de um local e um russo para comandos e chefias. Ou seja, se um chefe era local, o segundo tinha que ser russo. Ligados a Moscou, o poder de fato ficava com eles. Não podia dar certo. Não deu.

Quando visitei a Moldova, cheguei a Kichniov e quis comprar pequenas coisa locais, suvenires, postais, selos. Nada tinha motivação dali, tudo era soviético, de conquistas no espaço a façanhas esportivas olímpicas. Nem o idioma regional era permitido. Resistia meio clandestino em pequenos clubes ou residências de intelectuais que enfrentavam Moscou. Consegui postal da casa de Pushkin, tempo do exílio do poeta, um castigo tzarista. A outra conquista foi um jogo americano bordado com motivos regionais, com pequenos guardanapos. De volta a Moscou, meus amigos riram e lembraram avós bordadeiras. Ganhei presentes desses tempos. Em recente plebiscito a adesão a UE venceu por onze mil votos. A presidencial vai para segundo turno e a presidente separatista não tem certeza de vitória. Nada disso explica a debandada das repúblicas. Só dá para entender porque as ações desestabilizadores exógenas posteriores encontram terra tão fértil.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou