ARTIGO: A paz possível será possível?

Trump não apenas quer cortar a verba para Kiev, como quer algum de volta: US$ 500 bilhões é a conta dele sobre empréstimos e compras de armamentos

crédito: Sergei Chuzavkov/AFP/DAPRESS

Por Luiz Recena Grassi*

O analista europeu é objetivo: quem tem poder usa-o! Há mais de três anos acompanhando as relações tensas entre Rússia e Ucrânia, com formação militar além de política, o comentarista foi mais longe: a Ucrânia não terá protagonismo nas reuniões sobre o fim do conflito, que já começaram sem Volodymyr Zelensky. 

Apenas Donald Trump e Vladimir Putin, ao telefone, trataram do assunto, para valer, nos últimos dias. Esse é o fato. O que veio depois são flores do Cerrado, em época de seca. Reunião de Zelensky e Kaja Kallas, Antônio Costa e Ursula von der Leyen, na cúpula da União Europeia (UE), terminou com tímidos apelos a uma paz justa e com a repetitiva disposição de mandar armas, apoio e dinheiro para a Ucrânia. Ou seja, uma reunião inócua. 

O  líder francês Emmanuel Macron disse que, se a paz não for com honra, a Ucrânia sairá diminuída. Um pontinho ganho foi a reunião com o vice-presidente dos Estados Unidos, JD Vance, não passou disso. Sem estudar o tema, JD disse bobagens e até tropas fictícias prometeu. A questão é: siga o dinheiro! Trump não apenas quer cortar a verba para Kiev, como quer algum de volta: US$ 500 bilhões é a conta dele sobre empréstimos e compras de armamentos. Pouco provável que isso ocorra, mas é um aviso sobre a disposição do americano em ajudar ucranianos. 

A conta dos Estados Unidos é mesmo alta. O relatório oficial deixado por Joe Biden para Trump registra um gasto de US$ 999 bilhões durante o governo que saiu. Outros países também aumentaram, tipo China, Rússia, Alemanha e outros, com cifras bem abaixo do gasto norte americano. Nessa lista dos 10 mais a Ucrânia está no final. Não tem mais dinheiro e o que tem não é dela. Com esse perfil não entra na conversa dos grandes. 

Cerca de doze países da UE já disseram ser contra o ingresso da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), situação que só piora o quadro para Kiev. Assim é provável que nem a União Europeia entre nas reuniões sobre o fim do conflito. Vai ter um lugar importante, para assistir. Só.

Bruxelas foi advertida por Trump que a Europa não importa mais. Nem sequer passou de dois para cinco por cento suas verbas para defesa nos últimos anos. E perdeu a verba de propaganda que vinha pela dupla USAid-CIA, farta e sem muito controle, para investir na imprensa e defender os conceitos do “mundo livre”. Sem dinheiro, armas e poder político, não teria mesmo o que fazer nas reuniões de Trump e Putin. O jogo está delineado. Ninguém marcou prazo, não houve reações muito otimistas. Nem pessimistas. É mais uma loteria belicista para apostar.   

O CORREIO SABE PORQUE VIU. 

Estava lá. Outro dia escrevi sobre o normalmente bom relacionamento entre russos e brasileiros. Vou ampliar esse leque: os russos se relacionavam bem com quase todas as nacionalidades. Os únicos momentos de mau humor com outras etnias eram com seus conterrâneos das outras repúblicas soviéticas, sempre que tinham de enfrentar verdades diferentes entre o poder central, russo, e os habitantes de outras províncias. Os russos tentavam explicar aos outros porque mandavam e porque era assim; os outros não aceitavam. Entravam em debates longos, cansativos, que acabavam com a vodka. Podiam atrapalhar a festa ou confraternização. Acalmados, festejavam. E assim iam vivendo de amor. Nesse rol entravam todas as etnias, locais ou de outros países. Ucrânia, Belarus, as bálticas, as da Ásia Central, outros países europeus africanos e das américas. 

Riam quando viam brasileiros e portugueses falando mal dos africanos. Ainda não aprenderam a conviver? Perguntavam com alguma ironia na base das frases. Parecia tudo muito bem. Era possível disfarçar com eficiente discurso o subjacente sentimento de recalque, de desigualdade presumida entre os vários grupos que formavam a União Soviética. O que se viu na Perestroika foi esse sentimento explodir em vários pontos, juntos. Explosões consentidas durante o governo de Mikhail Gorbatchov. 

Até os russos aproveitaram os ventos da Perestroika para extravasar o que lhes vinha acumulado em cerca de sete décadas. A revolução trouxera muita coisa de positivo, mas a população queria mais: mais modernidade, menos gastos na máquina militar. Com Putin vem nova narrativa. É outra história. O melhor da memória são os amigos feitos lá e a fraterna convivência entre eles. Todos a curtir o apoio dos russos, mesmo com ironias e anedotas feitas por uns e contadas por outros. As divisões eram desejo antigo. As guerras não. “A guerra é ruim, não nos interessa, nosso povo perde”, disse a amiga russa que me explicava coisas. Tinha razão.

*O jornalista foi, por muitos anos, correspondente do Correio Braziliense em Moscou